quarta-feira, 7 de março de 2012

O nosso Hulk...e verde, como manda a regra


 A grandeza dos clubes mede-se pelos seus títulos, pelos seus adeptos...pela sua história. Mesmo que os tempos não sejam de grande pujança e, mesmo que o proclamado ecletismo esteja a contas com uma crise tão grande e tão em voga como a doutros sectores da sociedade, nunca é demais reviver algumas das nossas glórias. A história do grande campeão que seguidamente terão oportunidade de ler é sobejamente conhecida, e inclusivamente já foi aflorada noutros blogues leoninos. No entanto, um episódio recente e a publicação desta história num site espanhol fez com que achasse esta uma oportunidade a não perder.
O episódio prende-se com um encontro com sportinguistas, onde alguns dos presentes desconheciam a existência de personalidades como Moniz Pereira ou Aurélio Pereira.
No caso do Sr. Atletismo, mesmo achando que se trata de uma figura ímpar do desporto nacional, tenho consciência que o futebol é que suscita interesse e mediatismo. 
Sei que as crónicas do blogue têm uma afluência reduzida quando o assunto não é futebol. Temos por hábito bradar aos 4 ventos que somos a maior potência desportiva nacional mas, quando se trata de aflorar outros desportos, o interesse é reduzido, excepto se for para criticar as más prestações de uma qualquer secção.
A propalada grandeza do clube, onde ostenta um invejável lugar no pódio das equipas com mais títulos europeus, deve-se em grande medida às modalidades amadoras, onde o atletismo se destaca, com as Taças dos Campeões à cabeça.
No entanto, o que vai hoje estar aqui em destaque é o ciclismo e o seu expoente máximo, Joaquim Agostinho. Além fronteiras era conhecido por "Hulk" e, este era mesmo verde.
Apesar de saber que os leitores não apreciam textos demasiado longos, esta crónica pode fazer luz a alguns dos que desconhecem a sua grandeza enquanto atleta e, deste modo, possam orgulhar-se ainda mais da sua condição de sportinguistas.


Crónica retirada e traduzida do site espanhol, http://www.biciciclismo.com/cas/site/noticias-ficha.asp?id=48272

Um campeão forjado à base de golpes

Joaquim Agostinho é, sem dúvida, o melhor ciclista português de todos os tempos. Nascido em 1943 nos arredores de Lisboa (Torres Vedras), a sua carreira desenrolou-se entre 1968 e 1984, e a morte surpreendeu-o a andar de bicicleta. "Tinho" era uma força da natureza, um rolador de raça, não muito alto e forte  (um dos apelidos dados a ele pela imprensa internacional foi "Hulk") que conseguia as suas vitórias à base de força, já que, como veremos, estava longe de ser um virtuoso na bicicleta.
Quarto filho de uma família humilde de camponeses, desde muito pequeno teve que trabalhar no campo e, em 1964, é destinado a cumprir o serviço militar na guerra, em Moçambique. Aí participa em lutas corpo a corpo, sofre malária, assiste à morte de companheiros e ele próprio salva-se na explosão de uma mina, debaixo de um camião onde viajava. Isso marcou a sua vida para sempre. Na verdade, acredita-se que, no seu regresso a Portugal, Agostinho virou-se completamente para o desporto para esquecer essas difíceis experiências. Anos mais tarde, após uma extenuante etapa do Tour, fez uma declaração histórica sobre isso: "Quando me lembro da guerra, rio-me daqueles que dizem que a subida ao Ventoux é difícil."

O rei de PortugalEm criança, ele jogou futebol e sempre foi seu sonho vestir a camisola do Sporting Clube de Portugal. 
Assim, só deu as suas primeiras pedaladas depois da mudança forçada para África, já com 21 anos feitos. Aí, participou em corridas entre militares, aos quais logo começou a vencer, apesar de mal conseguir manter o equilíbrio na bicicleta.De volta a Lisboa, como não tinha meios para adquirir uma bicicleta, estreia-se com 25 anos de idade no seu primeiro "circuito"oficial com uma bicicleta de mulher, emprestada por uma amiga da sua irmã, o que não o impediu de ganhar com uma volta de avanço para o segundo. Isso chamou a atenção de João Roque, vencedor da Volta a Portugal em 1963,que em breve o levou a participar em corridas de maior nomeada .


Assim,pouco tempo  depois, sendo ainda um completo desconhecido, ganha o campeonato de Portugal e quase vence a Volta a Portugal, onde alcança um espectacular segundo lugar. Ainda nas nuvens, viaja para o Brasil para correr a Volta a São Paulo alguns dias depois, onde se impõe a um pelotão com várias equipas francesas e italianas. Jean de Gribaldy, patrão da equipa francesa Frimatic , contrata-o sem pensar duas vezes. Agostinho passou em poucos meses de fazer a sua primeira prova numa bicicleta feminina a assinar um contrato internacional,  algo muito complicado para um ciclista português, naquela época.

Mesmo começando a medir forças com os melhores profissionais de sua época, "Tinho" não negligenciou, nos seus primeiros anos, o calendário luso, onde forjou uma aura de invencível. Não é em vão que, até 1973, ganha seis campeonatos nacionais consecutivos,  três Voltas a Portugal, corrida onde levantou os braços, como vencedor, num total de 23 etapas. Agostinho fez que o seu país amasse mais, se possível, a Volta, e as suas míticas vitórias no Alto da Torre são lembrados pela imprensa local cada vez que a corrida volta à Serra da Estrela.Raphael Geminiani aconselhou-o a não participar mais no calendário do seu país, onde não tinha oposição. "Tens que escolher entre ser um campeão português ou ser campeão do mundo", disse ele, e "Hulk" seguiu o conselho.

A amarga Vuelta de 74Joaquim disputou  cinco Voltas a Espanha, obtendo 4 vitórias parciais e várias boas posições na classificação, apesar de funcionar quase sempre ao serviço de outros. Na sua estreia, em 1972, na oitava etapa a caminho de Tarragona, sofreu outro revés na sua azarada vida, ao colidir com um pilar de betão, onde fracturou a base do crânio. Só uma acção rápida por médicos da corrida evitam uma morte certa, ao praticar o "boca-a-boca" e transladando-o de urgência ao hospital mais próximo.
No ano seguinte, ele voltou como aguadeiro de Ocaña, que enfrentava um Merckx que iria assinar a sua única participação na prova espanhola e, claro está, com a vitória. Pouco puderam fazer contra o "canibal", que venceu seis etapas, contra as zero da dupla da equipa BIC. Agostinho ocupou o 6 º lugar e  Ocaña segundo.Já sem o belga Merckx, mas com Fuente e o francês Thevenet como principais rivais, Ocaña procura vencer a Vuelta do ano seguinte, de novo com Agostinho cobrindo-lhe as costas. A Vuelta de 74 seguiu durante as duas primeiras semanas o guião estabelecido, excepto pelo baixo rendimento do campeão francês que, apesar de ser líder por um dia, rapidamente desaparece na classificação. É na 13ª etapa, entre León e o Alto del Naranco, a caminho de Pajares, que a corrida se anima ao fugir Agostinho, junto com Lasa, companheiro de Fuente, que é líder e principal favorito ao triunfo final, frente a un Ocaña que mostrou sintomas de debilidade nas etapas de montanha.


Surpreendentemente, Lasa começa a ajudar Agostinho, desobedecendo ao Director Desportivo da equipa Kas e deixando-o à beira de um ataque de nervos. Os fugitivos abrem um fosso, mas na descida do colosso que separa o planalto das Astúrias, a chuva e o piso molhado atrasam um "Tinho"  con alguma falta de técnica e que faz essa descida com dificuldade depois das abundantes quedas sofridas na sua carreira . Fuente desce em solitário para alcançar o duo e, magoado pela traição do seu companheiro, realiza uma tremenda exibição e destaca-se, coroando a etapa no Alto del Naranco com uma vantagem de um minuto sobre Perurena, Lasa, Ocaña e Agostinho.

Agostinho sempre achou que lhe roubaram a Vuelta de 74
A prova parece decidida. Contudo, Agostinho não estava pelos ajustes e, perante a passividade do seu chefe de fila, a contas com uma bronquite e cujos sintomas já não consegue ocultar, "Tinho" impõe-se no alto de Cangas de Onis e, depois da queda de Fuente, na penúltima etapa, apresenta-se com possibilidades de vitória no decisivo contra-relógio final.
Numa etapa de 35 km, nos arredores de San Sebastian, a "prova da verdade" apresenta-se apaixonante, com un Fuente de amarelo com uma vantagem de 1´32” sobre Lasa, 2´35” sobre Agostinho e mais de 3 minutos e meio relativamente a Ocaña e Perurena, sendo todos eles melhores roladores que o líder.
Tal como se previa, o ataque de Agostinho foi tremendo, arrasando todos os seus rivais, à excepção de Ocaña, que perdeu pouco mais de um minuto. Perurena perde mais de 3 minutos, enquanto a diferença de Lasa para o lider supera os dois minutos, num controverso final.
O que podia ter ficado na história como uma vitória antológica foi antes substituído por um turvo acontecimento, nunca devidamente clarificado. Depois da chegada de Fuente, Agostinho chegou a ser proclamado vencedor, pelo megafone, sendo posteriormente corrigida a classificação pelos juízes, que atribuíram a vitória final a Fuente por 11 segundos.
Agostinho sempre afirmou amargamente que lhe roubaram a Vuelta, e a organização chegou a reconhecer erros de cronometragem, mas o certo é que a vitória nunca viajou para Portugal. Agostinho voltaria a brilhar en 1976, onde venceu de novo um contra-relógio e foi líder durante dois dias, mas nunca voltou a estar tão perto de uma vitória numa grande volta como aquela amarga tarde de 12 de Maio de 1974, que lhe calejaram a alma junto a outros dissabores na sua vida.

Alpe d'Agostinho
A estreia de Agostinho no Tour foi em 1969, e fez o que costumava fazer em sociedade, ou seja, deslumbrando. Ocupou o oitavo lugar na  geral e ganhou duas etapas, mostrando um potência descomunal. Todos os grandes ciclistas queriam a seu lado o português que, em nada era um virtuoso da bicicleta, mas que quando franzia as suas farfalhudas sobrancelhas todos ficavam em fila indiana e só uns privilegiados podiam seguir o seu ritmo infernal.
A sua passagem pelo Tour, mesmo com um par de episódios relacionados com doping, ficaram gravados a fogo na história da Grande Boucle. Com quatro grandes vitórias em etapas nas suas 13 participações, o corredor subiu duas vezes ao podium final e colocou-se 8 vezes no top-ten,  convertendo-se numa das lendas da prova francesa.
Além disso, sempre foi um corredor muito querido pelo seu carácter afável, o que cativou a afición espanhola, que praticamente o considerava um corredor da "casa", especialmente nas suas duas grandes actuações do Tour (1978 e 1979) que coincidiram com uma profunda crise de resultados dos ciclistas espanhóis. 
Como dissemos, "Hulk", em 1978, alcançou o pódio depois de muitos anos próximo deste desiderato. Foi um Tour onde se manteve em segundo plano na luta"até à morte" entre Zoetemelk e Hinault, vencido pelo então jovem francês, condenando o holandês ao título de eterno segundo, da prova francesa.
Foi em 1979 que chegou o momento alto da "locomotiva lusa".Acompanhou de novo os mesmos protagonistas mas para Agostinho foi um Tour completamente diferente.
A 15 de julho, chegava-se ao Alpe d'Huez. Agostinho esteve prestes a não participar depois de, de novo, uma dolorosa queda a caminho de Saint Brice (depois desse Tour esteve novamente à beira da morte devido a outra fractura na base do crânio causada por outra colisão). Pois, doze dias depois, não só recuperou de seus ferimentos, subindo mais de 100 posições na geral, como ainda venceu a etapa  rainha dos Alpes, com mais de três minutos à frente de  Zoetemelk e Hinault. E fê-lo em grande,  num dia que enfrentou os altos da Madeleine, Galibier e Alpe d'Huez.
Ele atacou no início da última das montanhas, aproveitando a marcação entre os dois favoritos e "Tinho" fugiu, com Bernaudeau na sua roda, um dos aguadeiros de Hinault. No entanto, logo deixou o francês à base de fortes pedaladas e foi passando, um um, todos os integrantes de uma numerosa fuga. Alban, Wellens, Laurent, Nillson, assistiram impotentes à exibição daquele robusto português, que naquela tarde de Julho alcançou o zénite, perante o delírio de um país que apoiava o seu herói. O avô do Tour de 1979, aos seus 37 anos, tinha sido finalmente consagrado.
Depois desta prova, a sua estrela foi-se apagando devido à idade e à grave queda atrás referida, a qual não o impediu de uma última aparição na prova que mais amou. Com 41 anos, assinalou um magnífico 11º lugar na prova francesa, depois de ter trabalhado toda a corrida para o irlandês Sean Kelly. 

O fim trágico
Com 41 anos, Agostinho estava prestes a retirar-se na temporada de 84, voltando a disputar de novo o calendário português, com a camisola do Sporting para depois correr, cedido,  o Tour pela última vez, igualando as catorze participações de Zoetemelk.
Mas a locomotiva que não conseguiu ser parada por 3 anos de guerra, foi travada por um inoportuno cão, nos últimos 300 metros de um contra-relógio da Volta ao Algarve, em que ostentava a camisola amarela.
Foi uma morte muito controversa, já que, depois de sofrer o acidente, Agostinho foi levado para o hotel, recebendo como única cura um saco de gelo na cabeça. Pouco depois, começou a sangrar do nariz, sendo só enviado para Lisboa mais de 4 horas após o acidente. Durante a terrível viagem de quase 400 km, entrou em coma, do qual nunca despertou. Depois de onze eternos dias de agonia, falecia, deixando para sempre no ar a pergunta. O que teria acontecido se tivessem actuado com maior rapidez ou tivesse sido trasladado para Lisboa por via aérea.
Assim, a 10 de maio de 1984, morria o homem mas nascia o mito, num Portugal onde lhe dedicaram estátuas, avenidas e onde se deu o seu nome a uma das provas mais importantes de ciclismo, o Troféu Joaquim Agostinho. Também em França renderam uma sentida homenagem e, na curva 14 de Alpe d'Huez erigiu-se um busto do bravo português, em tamanho natural. Para além do seu grande palmarés, não é de admirar tanta devoção por um campeão que, entrevistado pela RTVE dias antes da sua morte, expressava do seguinte modo o amor pelo seu país e pelo desporto que tanto lhe deu, e tudo lhe tirou.
"Foi-me pedido para mudar de nacionalidade várias vezes, mas eu não queria isso de nenhuma maneira. Sou Português até à medula. E se voltasse a nascer, ou a minha vida retrocedesse quinze anos, voltaria a ser ciclista profissional . Vou correr mais um ano no Sporting e depois quero continuar como Director Desportivo. Quero ajudar a descobrir futuros Agostinhos ".
Assim foi a história de um corredor que lutou contra muitas adversidades e que só a morte o obrigou a render-se. Um campeão forjado à base de golpes e de quem os fãs de ciclismo sempre se recordarão.


Palmarés mais destacado
 76 vitórias em sua carreira, onde se destacam os seguintes resultados:
 6 campeonatos de Portugal em estrada (68, 69, 70, 71, 72 e 73) 
3 Voltas a Portugal (70,71 e 72) 
23 vitórias em etapas na Volta a Portugal
 4 vitórias de etapa no Tour de France
 3 vitórias de etapa na Vuelta a Espanha
3 º lugar no Tour de France (78 e 79) 
5 º no Tour de França (71,80) 
2 º no Tour de Espanha (74)

2 comentários:

  1. Brutal! Magnifico texto. Obrigado.

    Agostinho será para sempre um dos nossos heróis.

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    1. Caro Virgílio
      Agradeço o seu comentário, bem como reconheço a grandeza do mito que se tornou Agostinho.
      Pena que o nosso desporto não seja servido por mais atletas da mesma estirpe, particularmente o nosso clube, que necessita de referências como esta para perpetuar o nosso ecletismo. Pena também que muitos dos que são pagos principescamente não tenham metade do sangue que corria nas veias deste ídolo.

      SL

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